Modelo de Gestão de Portfólio: a origem do pagamento de bônus a professores de acordo com o desempenho de estudantes em provas

Carolina Cunha da Silva

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Modelo de gestão de portfólio
Foto: Getty Images

Apesar de essa denominação não ser comum na área da educação brasileira, algumas redes de ensino daqui já têm implantado parte do Modelo de Gestão de Portfólio criado nos Estados Unidos no começo dos anos 2000. Ele chegou em terras brasileiras por meio da política de bônus, que consiste no pagamento de bonificações a profissionais da educação baseadas na medição do desempenho dos estudantes por meio de provas externas e padronizadas, elaboradas fora do contexto das escolas e que levam em consideração principalmente as disciplinas português e matemática. Porém, essa é só uma fração de um modelo de gestão mais amplo que foi investigado na dissertação de mestrado da autora deste texto, e será explicado nas próximas linhas. 

Origem

Em primeiro lugar, ele veio da área da gestão empresarial, o que não deveria surpreender tanto já que o que inspirou John F. Bobbit, um dos primeiros estudiosos sobre o currículo no início do século XX, foi o modelo industrial taylorista, e tinha como base métodos, padrões, medição e resultados (SILVA, 1999).

Pois bem, na gestão de portfólio, os pilares são parecidos: referências, medição e responsabilização. Ela pode ser comparada à gestão de carteiras de investimentos na bolsa de valores: as escolas são as empresas disponíveis no portfólio ou na carteira do investidor, que é o Estado; as cotações das ações das empresas são os índices proporcionados pelos testes padronizados (referências e medição): se os índices vão bem, vale a pena continuar investindo naquele “negócio”, e as bonificações são concedidas; se vão mal, tomam-se atitudes drásticas (responsabilização) desde a retirada de verbas e a demissão de diretores e professores até a extinção da escola. Com isto, espera-se que somente as “boas escolas” permaneçam. 

Esse modelo começou a ser implantado primeiramente em redes locais de ensino, como em Nova Iorque, e em 2002 foi ampliado para todo o país por meio da lei No child left behind (Nenhuma criança fica para trás). A lei vigorou de 2001 a 2015, quando foi substituída pela lei Every Student Succeeds (Todos os estudantes conseguem)  que, embora seja uma revisão da anterior,  manteve muito do modelo – inclusive com nomes muito parecidos.

School Choice

Outra característica decisiva para o modelo de gestão de portfólio é o princípio mercadológico da concorrência. Os resultados nas provas padronizadas são um critério para os pais saberem a qualidade das escolas e praticarem o que eles chamam de school choice, a “escolha da escola”; as mais bem ranqueadas seriam sempre as mais escolhidas e as “piores” receberiam cada vez menos alunos e com o tempo seriam fechadas ou modificadas (ou privatizadas). 

Outra maneira de proporcionar a concorrência é a diferenciação entre as escolas.  Entre os modelos escolares estão as escolas distritais, administradas pelo Estado, as charter schools, escolas públicas com administração privada, as magnet schools, com propostas pedagógicas voltadas a uma área específica do conhecimento, as escolas virtuais, com ensino remoto, e a opção de se estudar em uma escola privada com a política de vouchers (escolas privadas pagas com dinheiro público).

Entre as principais críticas ao school choice está o rompimento com a ideia da community school, que é a escola democrática idealizada na fundação do ensino público dos Estados Unidos; sua principal característica era ser a escola do bairro, com grande participação das famílias em sua organização. Porém, segundo Patricia Burch, professora na University of Southern California, a escolha da escola “foca nos direitos dos pais como consumidores individuais no lugar da ênfase no papel dos pais na tomada de decisão coletiva” (BURCH, 2009, p. 8, tradução nossa). 

Além disso, quem de fato tem o poder de escolha são as famílias com maior renda, que deixam de matricular os filhos em escolas próximas às suas residências e tendem a escolher as que apresentam notas maiores nos testes ou as com projetos diferenciados, ainda que distantes; e há um agravante: as últimas, como as charter e magnet schools fazem seleção de alunos. Assim, as famílias menos abastadas matriculam os filhos nas escolas próximas, que em sua maioria são as escolas distritais, com administração pública, que são aquelas que aceitam a todos sem distinção. Como consequência, as escolas se tornam um lugar de segregação social e em alguns casos racial, o que não é um fato novo nos Estados Unidos, que manteve a lei da segregação racial nas escolas até 1954.

Busca pela liderança mundial

As reformas para a implantação do modelo de gestão de portfólio na educação foram vistas como a salvação para os sistemas de ensino dos Estados Unidos no início do século XXI, sendo unanimidade entre democratas e republicanos. Desde os anos 1980s, o país se preocupa com a queda nos índices internacionais e com a não liderança na área da educação, perdendo cada vez mais espaço para os países asiáticos e do oriente médio que, além de superarem em número absoluto de jovens escolarizados, eles têm ocupado grande parte das vagas nas melhores universidades estadunidenses. Porém, duas décadas depois, a meta da liderança ainda não foi atingida, com o país na 25ª posição no ranking da OCDE no quesito “Desempenho dos alunos”, sendo um dos últimos entre os países desenvolvidos. 

Outro parâmetro interessante que aponta para os problemas do modelo é a crítica de profissionais da educação e de intelectuais. Vale mencionar a historiadora Diane Ravitch, que participou da implantação do modelo no governo Bush e atualmente tem feito forte oposição, o que pode ser visto em seu livro “Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano: Como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação”. Ela afirma que o modelo constrói “falsas analogias entre a educação e o mundo empresarial” (RAVITCH, 2011, p. 26) e denuncia que os fatores humanos, pedagógicos e sociais são totalmente deixados de lado e a responsabilização (ou punição) pelos resultados onera as unidades escolares e seus profissionais. Ravitch (2011) aponta outros problemas, como por exemplo, o foco do ensino ser deslocado para a habilidade de fazer provas e não para o conteúdo, a possibilidade de fraudes e alteração de parâmetros pelos governos, a falta de preocupação com o currículo escolar e a já mencionada segregação resultante da seleção de alunos por algumas escolas.

Um modelo a ser continuado?

Diante de todas essas informações, fica a questão: por qual motivo esse modelo continua em vigor e ainda é importado por outros países? Uma resposta possível a esta pergunta, pelo menos quanto à manutenção do Modelo de Gestão de Portfólio nos Estados Unidos, passa pela facilitação que ele proporciona tanto para a entrada de empresas privadas nas escolas públicas quanto para a aplicação de dinheiro público no setor privado. Por exemplo, na lei No child left behind (NCLB), dependendo da nota da escola nas provas, os contratos com empresas de reforço escolar eram obrigatórios (BURCH, 2009).

É evidente que a relação das escolas públicas com empresas não é um fato novo, considerando serviços como alimentação e transporte; porém, a partir da década de 1990, essa relação passou para outro nível, ao ponto de o setor privado entrar em escolas públicas e em sistemas de ensino para gerenciá-los de maneira integral, por meio das EMOs (organizações de gestão educacional).  Com isto, nas palavras de Patrícia Burch, “as políticas educacionais federais se tornaram um veículo para estimular e proteger o mercado” (BURCH, 2009, p. 6, tradução nossa). Ou seja, o Modelo de Gestão de Portfólio não somente transferiu conceitos mercadológicos para as políticas educacionais, mas também trouxe o mercado para o centro das decisões políticas na área da educação.

Referências Bibliográficas

BULKLEY, K. E. Introduction: Portfolio Management Models in Urban School Reform. In: BULKLEY, K. E.; HENIG, J. R.; LEVIN, H. M. (org.) Between Public and Private: Politics, governance and the new portfolio models for urban school reform. Cambridge: Harvard Education Press, 2010.

BURCH, P. Hidden Markets: The new education privatization. New York, London: Routledge, 2009.

RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Porto Alegre: Sulina, 2011.

SILVA, C. C. Representação da escola no cinema: um estudo sobre o filme Detachment. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos, 114f . 2019. Disponível em http://www.ppg.educacao.sites.unifesp.br/images/dissertacoes/2019/26.-Carolina-Cunha-da-Silva.pdf

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

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Professora na rede municipal de São Paulo. Bacharela e Licenciada em Letras e Mestra em Educação.

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6 Comentários

  1. Buonasera, Come va?
    Adorei seu texto, algumas perguntas pra entender o caminho que você traçou pra discutir.
    1. Você vai fazer outro texto relacionando com o nosso sistema?
    2. Você vai discutir essas relações e o caminho traçado pela Prefeitura de SP e como o Alípio vem trabalhando o rompimento desse modelo?
    Gostaria de discutir essas questões.
    Parabéns pelo Projeto e pelo texto.
    A presto.
    Beijo

    1. Oi Milton! Fico feliz que tenha gostado. Sobre suas dúvidas:
      1 – A minha pesquisa de mestrado foi sobre um filme estadunidense, então não me aprofundei nessa relação com o Brasil e não consigo ainda escrever sobre, mas está aí um ótimo tema de pesquisa acadêmica. Quem sabe um dia! Sobre a prefeitura, isso também teria que ser incluído na pesquisa.
      2 – O propósito do texto é criar consciência das motivações desse modelo, que só poderá ser rompido após uma mudança de paradigma daqueles que estão no poder. Sou cética quanto a um rompimento que parta de nós, já que as políticas educacionais são impostas; a não ser que seja nas urnas.
      Beijo!

  2. Os apontamentos que você faz a partir de Ravitch, infelizmente, são identificados também na política de bônus da rede estadual de ensino: despreocupação com o currículo, foco na habilidade de realizar as provas, até fraudes e principalmente segregação. Também não sei caminhos para resolver essa questão, acho que como você disse acima, só por meio das urnas!Parabéns pela ótima reflexão, Carol! 🙂

  3. Prezada Carolina,

    Alguns dos comentários acima já contemplaram algumas das questões que o seu texto me trouxe, mas pensei em mais algumas coisas, que gostaria de compartilhar e poder discutir com você e com os colegas:
    1. Incrível como o neoliberalismo ganhou uma força enorme no mundo na década de 90 do século XX, a ponto de termos a busca pelo enxugamento do Estado em campos diversos, como a educação e o campo militar – as guerras do Golfo, na qual os Estados Unidos “privatizaram” parte do conflito, é um exemplo. Interessante que vários filmes mostram, criticamente ou não, os problemas oriundos destas questões, mas elas ficam em segundo plano, sempre;
    2. A mecanização de todos os processos da vida humana, com o avanço “tsunâmico” da tecnologia de ponta, está nos levando para sermos, nas classes abaixo das elites econômicas mundiais, pequenas pecinhas catalogáveis dentro de uma engrenagem que funciona através da ideia do mérito. E somos tragados para essa concepção de vida por pessoas que saíram quilômetros em nossa frente, em uma corrida de 100m, nas quais ainda possuímos muitas barreiras. Será que deveríamos todos nos tornarmos ludistas?
    3. Essa busca pela liderança em índices é patética e destruidora de uma sociedade que possa ser mais plural e que contemple as reais necessidades que temos em nosso contexto arcaico. Precisamos construir novas experiências, e lutar para que as próximas gerações possam continuar essa luta.

    Grande abraço e vamos ampliar o estudo e as discussões!

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