RIP Lição De Casa

Carolina Cunha da Silva

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RIP Lição de Casa
Ilustração: Eduardo Malmagro Camacho

Quando chegamos como professores novatos na escola pública, geralmente trazemos conosco alguma idealização de escola e de estudantes; ela pode ir do paraíso perdido ao inferno na terra. A minha era mais próxima da primeira opção, pois achava que iria encontrar minha escola da infância nos anos 1990, já que também pertencia à rede municipal de São Paulo e estava em um bairro próximo. 

Estudei na hoje famosa escola Amorim Lima no bairro do Butantã, em São Paulo. Ainda que naquele tempo ela não tivesse nada de tão diferente, tive uma ótima formação inicial. Porém, neste texto quero lembrar um aspecto que está mais fora do que dentro da escola: as lições de casa.

É impressionante como me lembro de algumas tarefas de casa até hoje (não sei se isso é normal, mas eu lembro) e como aprendi com elas. Para citar uma, certa vez a professora Junko, de História, pediu para acharmos e comentarmos uma notícia de jornal sobre coligações na época das eleições (lembrem-se de que não tinha internet). Isso foi difícil, mas eu consegui! 

Lembro-me também das idas à biblioteca municipal do bairro, que chamávamos carinhosamente de “Biblioteca da Caixa D’água” (o nome real é Camila Cerqueira César). Havia dias em que encontrávamos a escola inteira lá por causa de alguma pesquisa solicitada, fazendo fila para consultar a Barsa. Não posso esquecer-me dos trabalhos em grupo, das reuniões nas casas dos colegas e daqueles momentos de simplesmente estarmos juntos, que também fazem parte do processo.

Quase trinta anos se passaram e é claro que não encontrei nada disso, muito menos o hábito de se estudar em casa. Mas então o que eu encontrei?

Antes de continuar, entretanto, para não basear-me somente em minhas experiências, fiz uma pesquisa sobre o que se tem falado sobre o assunto. Encontrei alguns trabalhos acadêmicos sobre a eficácia da lição de casa, estratégias usadas por estudantes em sua execução e como ela pode ser um elo entre família e escola; encontrei também muitos artigos não acadêmicos a aclamando, questionando sua necessidade e, opostamente à minha proposta aqui, discussões sobre seu excesso e a sobrecarga que pode causar nas crianças, baseados na experiência de escolas privadas e de outros países. Ou seja, independente do conteúdo, todos partiram do pressuposto de que a lição de casa segue plena.

Depois da pesquisa, olhei para o meu contexto e vi outra realidade: por aqui, a lição de casa não está tão viva assim. No decorrer de dez anos como professora de inglês no Ensino Fundamental II, tive que aceitar que para a maioria das crianças, todo conteúdo seria trabalhado dentro da escola. A constatação veio com a frustração, quando percebi que somente uma minoria traz de volta os trabalhos e lições para casa. O hábito de frequentar a casa de colegas para estudar também é raro e os trabalhos em grupo também passaram a ser feitos na escola, muitas vezes dentro da aula ou na biblioteca e na sala de informática para aqueles que chegam mais cedo. Há também aqueles que usam as aulas alheias para fazerem a lição de casa de outras disciplinas.

Com isto, embora eu acredite que o assunto mereça uma investigação mais ampla, percebi que há uma discrepância entre a realidade que me cerca e os debates públicos sobre o assunto. Parece que não há um movimento da mídia, tanto a grande mídia quanto a especializada, para ultrapassar os limites entre o pedagógico e o social. 

Entretanto, não é raro que os problemas educacionais se deparem com os fatores sociais do Brasil, que não são poucos; na realidade eles são inseparáveis. No caso do fracasso da lição de casa, destacaria os seguintes, com base em pessoas reais e lembrando de seus rostos e nomes:

  • Falta de estrutura em casa: muitas vezes as crianças moram em casas pequenas, sem uma mesa ou um cômodo separado onde poderiam se concentrar; há pais que precisam descansar e que pedem para que as luzes fiquem apagadas, impedindo qualquer ato de estudo ou leitura.
  • Ausência de um local silencioso: a falta de silêncio é um fator muito presente, seja interno, pela convivência de muitos em um lugar pequeno, com televisão e música ligada, seja por ruídos externos, de música alta ou motores de carros ou motocicletas.
  • Excesso de tarefas domésticas: crianças que precisam assumir a casa, cuidar de irmãos mais novos ou sobrinhos, cozinhar, fazer faxina, entre outros (em sua maioria meninas). 
  • Trabalho infantil: ainda se vê muito trabalho infantil nas cidades, como crianças que ajudam a família em pequenos comércios ou em trabalhos de limpeza, ou se empregam em lava-rápidos ou vendem itens nos semáforos.
  • Falta de acompanhamento da família: embora eu concorde que isto realmente acontece e que o fato de muitas famílias darem pouca importância à formação acadêmica das crianças precisa mudar, preciso dizer duas coisas sobre este tema: a primeira diz respeito à carga de trabalho dos adultos da classe trabalhadora. Conheci mães que passam a semana fora trabalhando como domésticas, e outras que acumulam jornadas de turnos diurnos e noturnos. A segunda, ligada à primeira, é que essa carga de trabalho serve para garantir o mínimo para suas famílias, e a prioridade com certeza será colocar a comida na mesa.
  • Falta de computador e internet para pesquisas: computadores e serviços de internet são caros e não acessíveis a grande parte dos estudantes das escolas públicas. Embora isto tenha ficado mais evidente na pandemia do novo coronavírus com a tentativa do ensino remoto, este é um problema antigo. Arrisco dizer que a falta de adesão ao ensino remoto na educação básica pública foi só uma continuação da baixa adesão anterior à lição de casa, não só por este, mas por todos os fatores sociais já mencionados. Pensei erroneamente que os recursos baseados na internet poderiam promover um revival da lição de casa, porém, eles jogaram a última pá de cal.

Portanto, olhando para este cenário onde todos os incentivos são contrários aos estudos extra escolares, fica claro que os aspectos pedagógicos são secundários e o dilema se a lição de casa pode sobrecarregar crianças é elitizado. 

Com isto, após perceber que resolver este problema passa por sanar uma das maiores mazelas do Brasil, que é a desigualdade, fui tomada por um sentimento de impotência. Ao mesmo tempo, tomei consciência de que, mesmo que eu proponha trabalhos para casa, a maioria só vai ter acesso às atividades de dentro da escola, ainda que isto vá de encontro com ideais pedagógicos. 

Pode ser que os estudantes estejam perdendo aprendizagens e momentos memoráveis como os que eu tive na infância? Talvez sim. Mas o lamento, o saudosismo e a culpabilização de famílias exauridas pelo trabalho não ajudam em coisa alguma. É preciso olhar para a realidade e assumir, mesmo que contrariados, que assim como a questão da alimentação, este é mais um déficit social que tem sido delegado (ou imposto) para a escola e ela luta para suprir dentro de suas paredes.

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Professora na rede municipal de São Paulo. Bacharela e Licenciada em Letras e Mestra em Educação.

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4 Comentários

  1. Muito bom…
    Mas no que as lições de casa ajuda no cognitivo?
    De que lições estamos tratando?
    Como citado no texto, países que não utilizam lição de casa, e estão bem no processo de ensino, não tem tantos problemas sociais.

    Beijo

    1. Olá Milton! Fico feliz que meu texto suscitou questionamentos, mas aqui nos comentários fica complicado discutir, precisamos trocar uma ideia! Mas para tentar resumir uma resposta, creio que a prática da pesquisa extra-classe, como um exemplo de lição de casa, é um fator benéfico que gera autonomia nos estudantes. Quanto ao outro ponto que você levantou, em países europeus e nos EUA a escola é em tempo integral, e aqui, só meio período. Talvez para quem estuda o dia inteiro, a lição de casa seja mesmo um peso, mas para os brasileiros que estudam em meio período, esse tempo a mais em contato com os estudos possa fazer falta. Mas aí surge outro questionamentos: a escola deve ser em tempo integral? Mas isso é assunto para outro texto!

  2. Prezada Carolina,

    Os pontos que você levanta em seu texto vão ao encontro daquilo que penso também sobre as “lições de casa”. E acho que as questões levantadas pelo Milton são extremamente relevantes para refletirmos sobre a importância ou não da lição de casa.
    Acho que o contexto histórico e as diferentes fases de ensino/aprendizagem também interferem bastante. Nossas “lições de casa” do passado eram sem internet, sem tanto acesso à informação e em um contexto de uma escola – e a sociedade – ainda meio “amarrada” ao fim do período de ditadura militar, mesmo vindos de um processo de abertura política motivado por movimentos sociais.
    Coloco aqui como uma hipótese: talvez os estudantes mais novos são os que mais precisam e recebem melhor as “lições de casa”. Quanto mais adolescentes, mais eles se “rebelam” contra as “obrigatoriedades”, e talvez a complexidade de atividades possa ser um caminho diferente, tendo a escola mesmo como ponto central, como projetos de feiras de ciências, seminários, entre outros. Creio que isso pode até se tornar um – ou mais – novo texto, hein.

    Grande abraço!

  3. Parabéns Carol, ótimo texto. Também sou da época das bibliotecas e dos trabalhos que eram quase uma aventura a lá indiana Jones.

    O estudo extra curricular é importantíssimo, mas está deficiência estrutural que, principalmente a periferia tem, acaba criando um abismo entre o aluno e o conhecimento.

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