A quantas anda a História e Cultura Afro-Brasileira no currículo do município de São Paulo?

Renato Naporano Bicev

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No dia 09 de janeiro de 2021 a lei nº 10.639 completou 18 anos. Não teve festa, mas espero que tenha sido por estarmos no meio de uma Pandemia. Se fosse uma pessoa, teria alcançado a maioridade, poderia ter feito o Enem e prestar os vestibulares, sonhando com a tão desejada vaga em uma universidade pública. Traço esse paralelo, para demonstrar que a partir de 2021, os “vestibulandos” recém saídos do ensino médio tiveram a totalidade de sua formação sob a vigência da lei que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, incluindo em seu Art. 26-A “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.” (Brasil, 2003, online). Portanto, é razoável deduzir que houve tempo o suficiente para que não restassem dúvidas sobre sua importância e que todas as redes, pública e privada, já tivessem implementado robustos programas que contemplassem a legislação em “todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” (Brasil, 2003, online), como esclarece o §2º da referida lei.

Muito foi feito, sem sombra de dúvidas. As universidades fortaleceram seus departamentos e centros de estudos africanos; cursos regulares e de extensão foram criados; ações afirmativas foram introduzidas; dentro das secretarias de educação dos municípios nunca se discutiu tanto sob a perspectiva das relações étnico raciais. Entretanto e apesar dos esforços, sabe-se que ainda temos uma lacuna significativa e um longo caminho a percorrer até garantir de forma universal a aplicação da lei. Numa visão micro encontramos alguns bons exemplos, como o projeto “Minha Rapunzel tem dread”, já publicado aqui mesmo no Relatos Escolares. Contudo, uma análise macro revela problemas estruturais que saltam aos olhos.

O Currículo da Cidade é um documento produzido pela secretaria de educação do município de São Paulo, em vigor desde 2019, para 9 disciplinas do ensino fundamental, educação infantil, ensino médio, educação de jovens e adultos e educação especial, com o objetivo de “alinhar as orientações curriculares do Município de São Paulo à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que define as aprendizagens essenciais a que todos os estudantes brasileiros têm direito ao longo da Educação Básica.” (São Paulo, 2019b, p.10). Como nem todas as redes são organizadas da mesma forma, cabe uma rápida explicação. O ensino fundamental da prefeitura de São Paulo é dividido em três ciclos de três anos cada – alfabetização, interdisciplinar e autoral – e o percurso de cada componente curricular é pensado levando em consideração esses tempos. Ele sucedeu o “Direitos de Aprendizagem”, de 2016, que por sua vez substituiu o “Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem”, publicado entre 2007 e 2008.

Capas do “Currículo da Cidade” correspondentes aos componentes curriculares História, Arte e Língua Portuguesa.

Ao examinar a publicação voltada ao ensino de História nos três ciclos do ensino fundamental, causam estranheza os fatos de que, dos 39 objetivos de aprendizagem e desenvolvimento do ciclo de alfabetização, apenas 3 se relacionam com a cultura afro-brasileira. O mesmo ocorre com os ciclos interdisciplinar e autoral: 4 de 49 e 9 de 35, respectivamente. Somando todos os objetivos de aprendizagem, são 16 que se aproximam de uma temática étnico racial de um total de 123, ou seja, menos de 15% do currículo, um claro desequilíbrio. Os objetos de conhecimento estão ali, porém de forma tão abrangente, como é o caso de “movimento negro” (São Paulo, 2019b, p.92), no nono ano, que praticamente qualquer tema que esbarra levemente no assunto pode ser considerado o suficiente. As lutas pelos direitos civis, a marginalização pós abolição ou o racismo estrutural, por exemplo, estão contemplados? Entendo que não, uma vez que pode-se escolher não falar disso, ou abordar de forma superficial na semana da consciência negra, já que não estão listados especificamente desta forma.

Pode-se argumentar que é um documento conciso, que as adaptações são possíveis, que o ensino de história é sempre um recorte, ou ainda que cabe a nós termos clareza de quais peças do quebra-cabeça não podem ficar de fora. Ou que a lei cita as áreas de Artes e Língua Portuguesa como co-responsáveis – “em especial”, pela temática.

O currículo de Arte, é, de modo geral, focado em conceitos a serem trabalhados em quatro campos conceituais (Processos de criação, Linguagens artísticas, Saberes e fazeres culturais, Experiências artísticas e estéticas)  em cada uma das linguagens artísticas – artes visuais, dança, música e teatro. Em cada uma das linguagens, ao menos um objetivo de aprendizagem e desenvolvimento é dedicado a explorar manifestações culturais populares ou tradições étnico-raciais, com exceção do Teatro que indica apenas um objetivo em todo o ensino fundamental, lá no nono ano, “Reconhecer a presença do teatro e das manifestações cênicas de diferentes povos e etnias, destacando as africanas, afro-brasileiras e dos povos indígenas” (São Paulo 2019a, p.101), dentre quarenta e sete planejados.

Já o documento de Língua Portuguesa, organizado em quatro eixos organizadores – prática de leitura de textos; prática de produção de textos escritos; prática de escuta e produção de textos orais; prática de análise linguística/multimodal – talvez seja o que apresente a proposta que considero a mais adequada (São Paulo, 2019c). Ao propor uma abordagem orientada para a diversidade cultural na escolha de temas, possibilita um vasto trabalho em sala de aula voltado para a discussão étnico-racial, especialmente ao apontar, em todos os anos do ensino fundamental, a realização de projetos interdisciplinares. 

Evidenciar, tanto essa metodologia, quanto o conceito de interculturalidade, e especificá-los em objetivos de aprendizagem ligados a essa prática em todos os componentes curriculares de forma consistente, é trazer um elemento crucial capaz de conectar os diferentes programas para além dos conteúdos tradicionais, articulando questões importantes para a construção de uma sociedade mais justa e atenta a seus problemas estruturais, ciente de sua história de luta e resistência, justamente o propósito da legislação. 

Nesse sentido, embora o documento de Língua Portuguesa proponha um caminho muito relevante, enxergo algumas ausências expressivas, em especial no currículo de História. O poder público não pode se esquivar do debate e, deixar questões importantes de lado é, em última instância, contribuir com a perpetuação de uma sociedade racista e excludente.

Referências Bibliográficas

BRASIL. LDB – Leis de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm> Acesso em maio de 2021


BRASIL. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10 de janeiro de 2003. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2004.

 

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade : Ensino Fundamental : componente curricular : Arte. – 2.ed. – São Paulo : SME / COPED, 2019a.

 

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade : Ensino Fundamental : componente curricular : História. – 2.ed. – São Paulo : SME / COPED, 2019b.

 

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade : Ensino Fundamental : componente curricular : Língua Portuguesa. – 2.ed. – São Paulo : SME / COPED, 2019c.

 

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e Autoral. (Coleção Componentes Curriculares em Diálogos Interdisciplinares a Caminho da Autoria). São Paulo: SME: COPED, 2016

 

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica. Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem para o Ensino Fundamental: ciclo II. São Paulo: SME / DOT, 2007.

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Professor na rede municipal de ensino de São Paulo. Bacharel e Licenciado em História e Licenciado em Pedagogia.

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1 comentário

  1. Excelente texto Renato. Sempre me questiono o quanto posso diversificar minha prática para que a questão étnico-racial seja debatida em sua integralidade, mesmo lecionando na área de matemática, que seria uma disciplina que fica em segundo plano quanto a referência dos documentos oficiais.

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