Entrevista com Heloísa Vigeta
Diretora escolar da nova geração, Heloísa Vigeta saiu direto da sala de aula, após quinze anos lecionando Português, para ocupar o cargo de gestão em uma EMEF na Zona Oeste de São Paulo em 2017. Em entrevista à Relatos Escolares, ela contou como foi esta transição e compartilhou sobre os desafios que enfrenta na gestão de uma escola. Também falou sobre sua trajetória e se emocionou ao lembrar do seu último ano na sala de aula, já que, apesar de “estar” diretora, sempre se considerará professora de Português.
O que fez você querer sair da sala de aula depois de tantos anos para acessar um cargo de gestão?
Heloísa: Não dá para dizer que existem motivos totalmente racionais para um professor decidir assumir a gestão de uma escola. Eu não pensei: “vou ser diretora, a partir de agora meu objetivo fixo, minha obsessão é essa”, como a gente ouve alguns casos. Eu nunca tinha pensado em ocupar um cargo de gestão, mas a partir do décimo ano de sala de aula, eu achei que seria legal ocupar uma outra função dentro do contexto escolar e da escola pública, e entender a escola a partir de um novo ponto de vista.
Eu também tinha muitas inquietações a respeito do que realmente é possível fazer como diretora. Eu tinha 23 anos quando comecei a dar aula; saí da faculdade direto para a sala de aula na cidade de São Paulo em uma EMEF periférica lá no Campo Limpo. Então, eu saía de Cotia, era secretária durante o dia e à noite eu lecionava. Aquela realidade toda me assustou muito, principalmente nos primeiros anos – eu tenho uma teoria de que nos três primeiros anos a gente ainda está se adaptando e entendendo.
Então, lá pelo décimo ano eu pensei que poderia, e fui amadurecendo a ideia para decidir para qual cargo de gestão eu prestaria o próximo concurso. Apareceu um concurso para coordenação e pensei que não seria o lugar onde eu gostaria de estar, é uma posição muito difícil dentro de uma escola, e decidi prestar concurso para diretora quando aparecesse. O concurso apareceu em 2015 e decidi fazer; estudei, pois a partir do momento que eu decidi que iria prestar, eu também queria passar, né? E assim foi.
Mas como eu disse no começo, não que exista um motivo racional, um porquê, mas sim aquela vontade de estar em outro lugar dentro da escola e de repente fazer coisas que eram angústias do grupo de professores do qual eu fazia parte e eu queria tentar fazer alguma coisa diferente daquilo que eu via.
Eu sempre gostei muito de dar aula e até me emociono ao lembrar do meu ano de 2016. Eu aproveitei cada instante, cada minuto que eu podia com os meus alunos.
Você ficou com pena de deixar a sala de aula?
Heloísa: O processo foi um pouco longo e eu acho que fui privilegiada no sentido de que pude me despedir da sala de aula. Eu prestei o concurso em 2015; no fim de 2015 eu descobri que tinha passado e que iria ser chamada na primeira leva em 2016, mas não chamaram. Foi um ano de espera e de despedida para mim.
Eu sempre gostei muito de dar aula e até me emociono ao lembrar do meu ano de 2016. Eu aproveitei cada instante, cada minuto que eu podia com os meus alunos; e era uma diversão, mas eu sabia que eu poderia não voltar no dia seguinte, ou no mês seguinte, ou depois de seis meses, ou sei lá depois de quanto tempo. Fui me despedindo aos poucos e, por exemplo, no fundamental, eram alunos que eu acompanhei desde o 6º ano e eles estavam terminando a formação no Ensino Fundamental, doeu meu coração.
No Estado, eu congelei meu cargo por um tempo, porque uma vez que a gente acessa a gestão, é só ida, você não pode voltar pro seu cargo de professor. Até que depois de um ano me chamaram, mas eu mantive esse cargo do Estado, porque caso eu realmente não me adaptasse, ou não gostasse, ou fosse algo que eu percebesse que não fosse para mim, eu tinha minha sala de aula e eu poderia voltar, estava precavida, mas deu tudo certo e eu segui gestora.
O que você sente mais falta do tempo que lecionava?
Heloísa: Olha, eu sou professora de Português e eu me sinto professora de Português eternamente, isto não sai de mim. O que eu sinto falta é desse trabalho em sala de aula com o texto, com a Língua Portuguesa, que é a minha formação original, isso me faz falta. Também de um contato mais próximo com os alunos; eu tenho contato com os alunos, obviamente, mas a relação professor-aluno dentro da sala de aula é outra, eu sinto bastante falta disso.
E o que você sente menos falta?
Heloísa: Vou ser sincera: corrigir redação. Graças a Deus me livrei disso, como eu sofria! E corrigir prova, meu Deus do céu! Quantos domingos que a gente senta em uma cadeira e passa dez horas corrigindo redação, e circulando, e anotando…
Outra coisa é que quando a gente é professor, geralmente tem dois empregos. Em quantidade de horas, a gente trabalha muito. Então, a minha jornada diária é menor e eu não sinto falta dessa jornada extenuante que eu tinha quando era professora. Você dá seis aulas de manhã no ensino médio, depois vai pros pequenos à tarde, toda aquela gestão da sala de aula para o negócio dar certo, fisicamente você sente. Já hoje, eu posso ter um pouco mais de tempo para cuidar das coisas que me fazem bem e que eu gosto além do trabalho.
Desde quando eu virei gestora até hoje eu paro e penso: 'eu estou aqui, mas não posso jamais esquecer dos meus quinze anos de professora e o que eu desejava que uma direção de escola tivesse'.
Algumas atitudes de certos gestores dão a impressão de que eles se esqueceram de como é estar na posição de professor. Você já teve esta impressão? E o que mudou quando você atravessou a fronteira da gestão?
Heloísa: Desde quando eu virei gestora até hoje eu paro e penso: “eu estou aqui, mas não posso jamais esquecer dos meus quinze anos de professora e o que eu desejava que uma direção de escola tivesse”. E não faço isso sozinha, porque a gestão de uma escola não funciona bem se não estiver tudo alinhado: diretor, seus assistentes e seus coordenadores pedagógicos.
Na verdade, eu acho que eu não sabia muito bem o que era ser diretora, mas eu sabia tudo aquilo que eu não queria ser. Agora, como eu iria fazer, aí eu tive que descobrir.
Muitas vezes quando você está na sala de aula, você quer ser ouvido por alguém da gestão, não pra te dizer: “a lei é tal”, “isso não pode”, “isso pode”. Não, você quer ser ouvido, você quer ser acolhido, você quer que a pessoa te entenda.
Eu lembro de coisas que quando eu era professora eu não pensava que uma direção pudesse fazer. Por exemplo, eu tinha um armário na minha sala de aula que vivia despencando em cima de mim; uma coisa tão básica, que é a manutenção do prédio. Um diretor pode, sim, colaborar para o bom funcionamento do prédio, pelos equipamentos que estão ali, ou pelo menos dizer: “não dá para fazer assim, vamos fazer de outro jeito”.
Os diretores podem ter um olhar diferente, um pouco mais acolhedor, porque a gente fica o dia inteiro dentro de uma escola, diretor, professor, alunos. É o mínimo transformar aquele ambiente em um lugar mais gostoso para a gente ficar, mas propício para a aprendizagem do aluno, mais acolhedor para o professor.
Pra você ser diretor é essencial você gostar de pessoas, você ouvir o que as pessoas têm a dizer, mesmo que não goste muito daquilo que ouça.
Antes de acessar a direção, você achava que tinha as competências necessárias?
Heloísa: Eu não sei se naquele momento que eu estava acessando eu tinha a noção ou imaginava que eu tivesse as competências necessárias, mas algumas eu pensava que sim, como por exemplo, gostar de gente. Pra você ser diretor é essencial você gostar de pessoas, você ouvir o que as pessoas têm a dizer, mesmo que não goste muito daquilo que ouça; permitir que o outro tenha o seu lugar de fala, como a família, que às vezes vem “reclamar” (eu prefiro pensar que eles levam o ponto de vista deles e nós precisamos analisar suas falas).
Estar apto a mediar conflitos, porque uma escola é um campo de conflitos. Então eu acho que essas habilidades eu tinha, depois de todo aquele tempo de sala de aula.
Depois que você acessou a gestão, quais competências você descobriu que precisaria desenvolver?
Heloísa: Ter empatia, ouvir o outro, solucionar conflitos, buscar soluções para os problemas da escola; às vezes as soluções não vêm rápido, não vêm somente das discussões que acontecem ali dentro da escola, às vezes você precisa de uma ajuda.
Você precisa também parar e olhar o seu trabalho, isso existe quando a gente é professor e precisa continuar na gestão: olhar o seu trabalho, avaliar, ouvir o que os outros têm a dizer sobre ele e mudar o rumo, mudar o norte da atuação.
Outra competência muito necessária é organização. Tem bastante burocracia no cargo de diretor e você precisa se organizar e saber distribuir essas suas obrigações burocráticas para que você não seja sufocado; precisa delegar e acompanhar.
Sobre coordenar o projeto pedagógico da escola, embora os coordenadores pedagógicos estejam muito mais próximos ao professor nos horários de formação, o diretor não pode se afastar disso e pensar “eu sou diretora e a partir de agora minha função é carimbar, assinar, gastar dinheiro e prestar conta”. Não pode ser assim.
O curso de pedagogia capacita para a função, ou você aprende mesmo na prática?
Heloísa: Acho que depende; por exemplo, quando a gente é licenciado, no meu caso eu fiz graduação em Letras e licenciatura em Língua Portuguesa, normalmente ao se fazer a pedagogia, a gente faz aquela para licenciados, num espaço menor de tempo.
Então, para mim, a pedagogia que eu cursei não trouxe o conhecimento todo que eu desejava, nem me ajudou nessa questão da gestão. Mas acredito que há outros cursos de pedagogia, por exemplo, quem cursa em um tempo regular, ou numa universidade pública, talvez tenha uma formação que nesta minha pedagogia eu achei que faltou. Não sei te dizer se alguém que fez uma pedagogia mais sólida, mais consistente, tenha aprendido mais e isso possa ser mais útil.
A minha base foi ter feito uma faculdade de Letras numa universidade pública que você é jogado lá dentro e aprende a ser autodidata, a ser um leitor crítico, a produzir textos críticos “na raça”. Eu creio que essa minha formação e mais a experiência de quinze anos em sala de aula foram mais importantes para mim ou mais significativas, do que propriamente a pedagogia. Se for pensar no curso de licenciatura, onde a gente começa a discutir o que é a escola pública, ali você começa seu projeto enquanto educador e vai construindo.
Quando eu acessei o cargo, nós tivemos uma formação básica na Diretoria de Ensino, principalmente com essa relação contábil. O trabalho de gastar dinheiro em uma escola é uma coisa louca. Eu aprendi muito com a Elaine que era minha assistente, mas a gente só vai aprender mesmo quando tiver que prestar conta daquela verba. É um eterno aprendizado, estou aprendendo até hoje, embora me sinta mais confiante, depois de quatro anos.
E você vai aprendendo com quem já esteve na escola e com os colegas. Foi uma leva grande de novos diretores na região e a gente trocava muita figurinha. E sempre tem um par avançado, né? Aí, você vai aprendendo.
Uma escola que não tem conflito não é escola. E se está tudo muito quieto tem algum problema: ou alguém cansou de falar, ou não reclama porque sabe que não vai dar em nada.
Você disse que a diretora de escola precisa saber mediar conflitos. Mas há como evitar conflitos na escola?
Heloísa: Uma escola que não tem conflito não é escola. E se está tudo muito quieto tem algum problema: ou alguém cansou de falar, ou não reclama porque sabe que não vai dar em nada.
Eu acho que os conflitos maiores entre a gestão (que é o diretor, os assistentes, e os coordenadores) e os professores se deve muito a algumas práticas de sala de aula. Você respeita o fazer do professor, as diferentes concepções pedagógicas dentro de uma escola, mas tem momentos que esse fazer da sala de aula não está de acordo ou está fugindo muito do que é o projeto da escola e acho que os conflitos maiores vem daí; e os alunos percebem. Então a gente conversa, faz mediação, propõe novas formas de agir; às vezes dá certo, às vezes não, e os problemas voltam a todo instante e a gente vai achando jeitos de puxar aquela linha, de desenrolar, de solucionar.
A porta da sala da direção, onde ficamos eu e os dois assistentes, fica aberta para todo mundo. Aí tem a criança que brigou por causa do lanche, professor que brigou porque o outro colega falou algo, e estamos lá para falar “calma gente, não é assim”. Esse é o cotidiano de uma escola, não pense que é diferente. E amanhã está todo mundo bem, está tudo resolvido, ou se não está resolvido pelos menos está caminhando.
Mas é tranquilo. Eu não sei se eu tive sorte, trabalho em uma escola maravilhosa, aconchegante, nos receberam muito bem e fomos bem acolhidos! E o projeto da escola é o diálogo, sempre foi, então as coisas já existiam estruturalmente ali dessa forma e eu cheguei respeitando toda a tradição da escola, tudo aquilo que a escola construiu. Por isso, acho que é mais fácil, não precisa inventar a roda, ela já estava em movimento e é só você ver como ela vai continuar.
Dá para pensar em pedagogia enquanto você preenche a burocracia?
Heloísa: Olha, gente, é muita burocracia. Tudo em uma escola é pedagógico, mas obviamente esse lidar pedagógico mais próximo do ensino, da aprendizagem, do professor e do aluno fica mais a cargo da coordenação; se eu dissesse que não, estaria mentindo. Nós somos três na minha escola, eu mais dois assistentes, e nós dividimos as burocracias, e aquelas emergenciais, a gente vai distribuído conforme a demanda.
Uma vez, uma professora querida entrou na sala e falou: “Nossa Heloísa, eu falo com você, mas você não olha no meu olho”. Eu falei: “Professora, eu tenho que terminar esse negócio agora, não dá para olhar para você, mas fala que eu tô te ouvindo”.
Têm momentos que a gente é sobrecarregado demais, principalmente com prestação de contas; são três, quatro dias da semana que eu fico horas na frente do computador. E tem também as burocracias emergenciais; estamos em um tempo que você dormiu, abriu o email na manhã seguinte e tem uma lista de coisas burocráticas que você nem entendeu direito pra quê serve. Aí, você vai tentar entender porque estão te pedindo aquilo.
Existem aquelas que já são institucionalizadas, não tem pra onde fugir, mas podem melhorar. Mas o nosso papel de diretor também é questionar essas burocracias que vem para gente. Aqui dentro desse território do Butantã, existe um movimento forte das gestões de questionar o porquê de certas burocracias. Eu acho que se nos livrássemos de algumas que não são tão necessárias, talvez sobrasse mais tempo para o pedagógico.
(...) a secretaria tem um papel importantíssimo dentro da escola, porque é ali que chega a família. O secretário não é o batedor de carimbo, o que faz os papéis. Ele contribui muito com a gestão, com essa escuta.
Tudo o que acontece na escola, a primeira pessoa a responder, independente de quem foi a culpa, é a diretora. Como você lida com essas responsabilidades que recaem necessariamente sobre você?
Heloísa: É isso que você disse, tudo recai no registro funcional do diretor. Você tem que saber se a laranja que está entrando na sua cozinha está de acordo com os padrões, você é responsável por pagamento de transporte escolar, pelo apontamento do trabalho do professor, você é responsável por tudo o que dá certo e o que o dá errado. No começo dá medo, eu pensava “meu Deus do céu, será que eu estou fazendo uma besteira, será que meu nome vai sair publicado no diário oficial?”. Depois você vai criando uma certa confiança e aprendendo o que dá pra fazer e o que não dá, o que pode e o que não pode.
E tem mais o papel da supervisão; a gestão de uma escola é composta pela direção, coordenação e supervisão. Antigamente eu achava que a supervisão era o órgão fiscalizador da escola, quando as diretoras chegavam e falavam “não, isso não pode fazer porque a supervisão não deixou”. Isso era um argumento muito usado. E na verdade a supervisão compõe toda essa gestão, e é uma parceria muito legal.
Qual a importância de você escolher seus assistentes e secretários?
Heloísa: Para trabalhar numa gestão de escola, não pode ter medo de trabalho, porque é trabalho pra caramba. Antigamente, quando eu era professora, eu achava que os assistentes não deveriam ser escolha do diretor, eu acreditava que deveriam ser escolha dos professores, mas porque naquele momento, a direção não estava alinhada com os nossos interesses. Então, eu pensava que o assistente precisava ser um representante legítimo dos professores. Hoje eu vejo que não, porque você precisa de pessoas que você confie cegamente. Podem ter opiniões diferentes, mas que tenham um estilo de trabalho parecido.
Sobre a secretaria, todas essas coisas que o diretor responde, como apontamento de falta, apontamento de presença, emissão de atestado, o secretário é responsável por isso. E a secretaria tem um papel importantíssimo dentro da escola, porque é ali que chega a família. O secretário não é o batedor de carimbo, o que faz os papéis. Ele contribui muito com a gestão, com essa escuta; quando os professores têm algum problema, ele está sempre disponível. Então, esse grupo de secretário e assistente precisa ser coeso mesmo, senão a escola não funciona. Tem lugares, por exemplo, que a direção orienta uma coisa e o servidor que está responsável fala outra. Então precisa ser casado e de extrema confiança.
O que você faria melhor se tivesse mais autonomia no seu cargo de diretora?
Heloísa: Eu acho que eu tiraria o gesso de muitas burocracias. A gente recebe dinheiro e cada verba é limitada a uma coisa, não pode usar para outra. Também, contrataria funcionários, minha escola não tem vigilante 24 horas, a gente é furtado toda hora. Gostaria de ter autonomia com o horário de funcionamento, pensando “esse não está dando certo, vamos tentar de outro jeito”. Abriria salas, a gente brigou um ano para a abertura de uma sala e conseguiu, mas já vem pronto. Nossa, é pedir demais, mas eu gostaria bastante.
1 comentário
Que alegria poder ouvir/ler a visão de um gestor sobre o ambiente escolar. Entender melhor que, a burocracia, muitas vezes, faz com que o gestor não esteja tão presente fisicamente na sala dos professores ou em um momento de formação, porém que essas burocracias são fundamentais para o funcionamento da escola.