Carolina Cunha da Silva
Não é difícil crer que há um projeto para a manutenção da ignorância no Brasil, escrito e documentado, com exemplares em cada gabinete dos parlamentares, das prefeituras, dos governos estaduais e do Planalto.
Embora possa soar verossímil, isto não passa de um devaneio com o intuito de compreender as mentes dos tomadores de decisões na área da educação brasileira.
Observando, portanto, a forma como a educação e sobretudo nós, professores e profissionais da educação, somos tratados, fiz um exercício de imaginação de como seria o capítulo distópico das “políticas públicas”, principalmente as ligadas à carreira do magistério em um possível projeto oficial e de desmonte:
1 – Sucateie e/ou mercantilize os cursos de pedagogia e as licenciaturas. Não esqueça de fazer isto também com as formações continuadas.
2 – Trate professores como operadores de máquinas e considere o tempo de trabalho sem alunos como “ocioso” e não digno de remuneração. Ignore a necessidade de pesquisa, preparação de aulas, correção de atividades e momentos de troca com os pares, ou justifique este ponto dizendo que toda a profissão exige trabalho extra. Crie demandas burocráticas repetitivas, sem sentido, que nunca serão lidas.
3 – Faça-os trabalhar em prédios sem manutenção e sem preocupação com o conforto térmico e acústico, em salas de aula que atingem mais de 40 graus no verão e mais de 80 decibéis em todas as estações do ano.
4 – Coloque entre 30 e 40 crianças dentro desta mesma sala, considerando que dentre elas, haverá muitas com dificuldades de aprendizagem. Contraditoriamente, cobre um ensino individualizado, visando as dificuldades e potencialidades de cada aluno, ainda que sejam dezenas ou até centenas deles para cada professor.
5 – Dificulte e desencoraje ao máximo as possibilidades de fazerem pós-graduação, mestrado e doutorado e caso insistam, encontre maneiras de os títulos não servirem para evolução no plano de carreira e aumento de salário.
6 – Pague um salário insuficiente (se comparado a qualquer cargo que exige ensino superior) que espante profissionais mais qualificados (que vão preferir fazer qualquer outra coisa) ou que force os que encararam o desafio a acumular jornadas duplas ou até triplas. Deixe-os exaustos e sobrecarregados ao ponto de precisarem faltar em um turno para conseguirem estar presentes no outro.
7 – Para compensar o baixo salário, invente um bônus incerto com critérios obscuros e atrelados ao desempenho de alunos em provas. Só pague o bônus se a nota do ano corrente for maior do que a do ano anterior, ainda que o grupo de alunos testados seja diferente.
8 – Faça-os desenvolver variadas doenças devido às condições de trabalho, como doenças respiratórias, calos nas pregas vocais, tendinites, depressão, hipertensão e outras. Sucateie hospitais destinados a servidores públicos e não considere os fatores de insalubridade da profissão.
9 – Use todos os motivos acima para desprestigiar a profissão docente e fazer com que os jovens coloquem esta carreira como última opção (ou nem a considerem).
10 – Responsabilize-os pelas mazelas da educação do Brasil, ignore todos os problemas acima e chame-os de vagabundos ou diga para que exonerem seus cargos quando souber que estão protestando por melhores condições de trabalho e por uma melhor educação para todos.
Eu gostaria de dizer que os itens listados são absurdos. Porém, embora não existam desta maneira escancarada, na prática eles são parte do cotidiano dos profissionais da educação, seja de escolas públicas ou privadas, desde as primeiras etapas do ensino até os cursos superiores. Portanto, ao refletir que a autoimagem é atravessada pela representação do outro, é urgente o resgate da autoestima e da dignidade docente no Brasil.
Professora na rede municipal de São Paulo. Bacharela e Licenciada em Letras e Mestra em Educação.
4 Comentários
Aqui esta um RX das percepções da maioria dos professores atualmente.
Um texto oportuno e verdadeiro. Passei 35 anos vivenciando isso. Nada muda… pode mudar sim, pois relatos como este desperta consciência.
Carol obrigada por traduzir de maneira profunda, objetiva e direta como é tratado o docente no Brasil. Uma triste realidade vivenciada diariamente nos chãos das salas de aula.
Prezada professora Carolina C. gratidão por compartilhar conosco esses olhares, que nos representam tanto. São dezesseis anos no magistério, com fins de semanas e feriados dedicados ao trabalho, e as forças já não são as mesmas por me sentir cada vez mais vencida em inúmeros aspectos apontados, ou que não compuseram sua excelente lista; por perceber que economistas entre outros que não atuam na escola, sentem-se tão “assertivos” em decisões que a afetam e repercutem negativamente por gerações…