A Linguística no ensino de Língua Portuguesa: o exemplo dos gêneros de texto

Maria Carolina Leite

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Até algum tempo atrás as propostas de ensino de Língua Portuguesa no Brasil centravam-se na memorização e reprodução das chamadas regras gramaticais. Sem dúvida é importante conhecer a gramática normativa, isto é, o sistema de regras de uma língua. Porém, dessa forma a língua se apresenta como uma abstração (Saussure, 1916). A língua é mais do que um sistema de regras, ela é viva e está em constante mudança. À medida em que a Linguística se consolida nos cursos de Licenciatura, percebeu-se que é fundamental aproximar o processo de ensino-aprendizagem do uso da língua. Desde então, os currículos de Língua Portuguesa, principalmente de escolas públicas, passaram a apoiar o ensino de língua na teoria dos gêneros de texto (Bakhtin, 1997).

Linguagem e relações humanas

A teoria dos gêneros de texto permeia os currículos, mas não é amplamente conhecida. Ela parte do pressuposto de que é preciso um entendimento mais abrangente do que se entende por linguagem verbal.

A linguagem verbal – por meio de palavras orais ou escritas –  tem sido compreendida de formas bastante diversas. Uma concepção comum é a de que ela é um instrumento de comunicação.  Os falantes de uma determinada comunidade linguística se apropriam do idioma para compreenderem e serem compreendidos. Nesse caso, a língua é um conjunto de etiquetas que colocamos nos objetos. A concepção de língua como ferramenta não dá conta de todo o potencial da linguagem, pois a vê somente como representação do pensamento (Saussure, 1916). 

Conceber a linguagem como ferramenta de comunicação considera o contexto imediato. No entanto, uma língua guarda consigo toda a experiência histórica, social e ideológica acumulada por um povo durante a sua existência. 

Qual seria a concepção mais adequada? A Linguística moderna compreende a linguagem verbal como atividade humana. Ela é uma forma de interação entre os sujeitos, por meio da qual os sentidos são produzidos no mundo (Bakhtin, 1992). Essa concepção confere à linguagem um caráter dialógico: os sujeitos inseridos na interação não só compreendem os significados, como fazem parte do seu processo de construção. “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, mas pelo fenômeno social da interação verbal”, explica Bakhtin (1992, p. 127). A linguagem verbal constitui e é constituída pelas relações humanas. Considera-se que nossa compreensão da realidade se faz sempre por meio dos sentidos que atribuímos às coisas e o que eles representam na nossa cultura.  

Texto e contexto de produção

Compreender a linguagem como atividade humana tem implicações diretas na maneira de organizar o processo de ensino-aprendizagem de língua. Para que o processo seja apoiado na linguagem em uso, o foco da aula de Língua Portuguesa precisa ser o texto. É no texto que os discursos são materializados. 

Ao dizer “texto” logo vem à mente um conjunto de palavras impressas em um papel. Na verdade, o significado é mais abrangente. “Um texto é uma ocorrência linguística, escrita ou falada de qualquer extensão.” (Costa Val, 1991). O texto é uma unidade da linguagem que possui sentido, produzido por alguém, para um interlocutor e em um determinado contexto. 

Em textos escritos, ainda que o interlocutor não esteja presente, produzimos o texto pensando nele. “Não pode haver interlocutor abstrato, não teríamos linguagem comum com tal interlocutor. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar isoladamente, na realidade  vemos através do prisma do meio social que nos engloba” (Bakhtin, 1991, p. 116). Sem o interlocutor não temos de fato uma interação verbal. 

Nossa vida é permeada por textos porque as atividades humanas são permeadas pela linguagem. Suponha uma situação cotidiana como uma ida ao mercado. Esta atividade pode envolver textos como um bilhete, uma lista de compras, um panfleto de ofertas do supermercado, etiquetas de preço, rótulos dos produtos, etc. Cada um desses textos tem um locutor (quem fala ou escreve), um interlocutor (quem ouve ou lê) e uma situação específica (contexto). 

O processo de interação depende, necessariamente, desses fatores. Por isso, uma interpretação satisfatória não pode ser feita dissociando estes elementos ou tirando o texto de seu contexto. Podemos imaginar que a ida ao mercado é uma cena de uma peça teatral e com isso tudo mudaria.  “O essencial na tarefa de decodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular” explica Bakhtin (1992, p. 96).

O que chamamos de contexto vai além do momento da interação. A escolha de palavras, por exemplo, é determinada por uma série de fatores. Ao optar por uma palavra, estamos considerando os sentidos que são produzidos por ela – e esses  sentidos foram construídos historicamente. 

O contexto engloba o percurso histórico e social do grupo, dos seus falantes, o grau de intimidade entre eles, entre outros fatores. De acordo com Bakhtin “As formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece” (1992, p. 45). Os textos são sempre orientados e determinados pelas características do contexto de produção no qual se realizam. 

O que são gêneros de texto?

Em uma sociedade letrada como a nossa, as práticas sociais que se dão pela linguagem são inúmeras: vão desde ir ao supermercado até assistir a uma aula. Os sujeitos elaboram diferentes discursos em diferentes esferas de atividade.  Os textos podem ocorrer na  esfera cotidiana, acadêmica, literária, jornalística, profissional, entre outras. De acordo com Bakhtin “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (1992, p. 117). Todo discurso resulta em um texto organizado inevitavelmente em gêneros. Os gêneros textuais exercem uma função específica, ocorrem em uma determinada situação de comunicação e apresentam uma intenção.

Os gêneros de texto são estruturas relativamente estáveis e se caracterizam por três elementos fundamentais (Bakhtin, 1997):

  • Conteúdo temático: o que é possível ser dito por meio daquele gênero. 
  • Organização composicional: estrutura interna dos textos produzidos no gênero;
  • Estilo: marcas linguísticas do gênero.

Na esfera jornalística encontramos gêneros como notícia, entrevista, reportagem, artigo de opinião, entre outros. Cada gênero possui características comuns no que diz respeito à sua estrutura, conteúdo e linguagem utilizada. Uma entrevista é organizada em perguntas e respostas, abrange assuntos relativos ao entrevistado e, no geral, possui uma linguagem acessível. 

Nesse sentido, são exemplos de gêneros textuais:

Tabela gêneros textuais

Conforme as interações se modificam, os gêneros também se alteram. Podemos elencar diversos gêneros de texto que estão desaparecendo, sendo substituídos por outros, além do surgimento de novos gêneros.  

A carta foi um gênero de texto escrito bastante utilizado em diversas esferas de atividade. Durante muito tempo, elas foram a principal forma de interação entre indivíduos que estavam distantes. Com o avanço da tecnologia e o advento da Internet, as cartas foram sendo substituídas por outros gêneros de texto escritos. Primeiro pelo e-mail, que ainda não possibilita resposta imediata do interlocutor e, mais recentemente, pelos aplicativos de conversa que possibilitam uma interação quase imediata. 

Atividades orais

É comum pensar nos gêneros de texto como estruturas da modalidade escrita. No entanto, interações orais também configuram textos e, consequentemente, gêneros de texto. 

As interações orais vão além das conversas cotidianas. Os gêneros de texto que se efetivam nas práticas orais da linguagem também possuem estrutura, conteúdo e estilo próprios. Uma assembleia tem finalidade, tema e organização – cada indivíduo tem seu momento e tempo de fala, por exemplo. Uma palestra se caracteriza pela fala de um único indivíduo e o momento destinado a perguntas normalmente acontece no final. Uma aula pode ser organizada de diferentes maneiras, mas é esperado que as regras de interação sejam previamente estabelecidas entre os participantes. 

O debate político, o discurso religioso, o seminário acadêmico, entre outros, são exemplos de gêneros de texto orais com organização, conteúdo e estilo particulares. 

Gêneros de texto orais são produzidos a partir de práticas que se dão através da linguagem oral. Portanto, não se deve confundir linguagem oral com a oralização da escrita. Trabalhar a linguagem oral é valer-se de gêneros de texto que se dão em interações orais (Dolz e Schneuwly, 2004). Ler uma notícia em voz alta não configura um gênero de texto oral, pois a notícia é um gênero que utiliza a modalidade escrita da língua. 

Propondo uma reflexão sobre a língua

Os contextos de produção dos textos são únicos e impossíveis de serem reproduzidos. Um texto será tão mais eficiente quanto mais adequado estiver às características de seu contexto de produção. A intenção é possibilitar o trabalho com uma língua contextualizada, que se usa, efetivamente, nas práticas em que o indivíduo participa.

Nossa visão do mundo foi e continua sendo construída através dos nossos discursos. Como indivíduos inseridos dentro de uma comunidade linguística, partilhamos dos sentidos que damos às coisas e participamos de sua construção. Nos cabe investigar quais são os desdobramentos e nuances envolvidos na linguagem humana. A língua é um objeto de estudo vivo, do qual intrinsecamente fazemos parte. 

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. (V. N. Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1992.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 277-326. 

COSTA VAL, M. da Graça. Redação e textualidade. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral.  São Paulo, Cultrix, 2012, 8 ed.

mariacarolina@relatosescolares.com.br | + posts

Professora na rede municipal de ensino de São Paulo. Bacharela e Licenciada em Letras Português/Linguística e Licenciada em Pedagogia.

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6 Comentários

  1. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar.
    BAKTHIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 88.

  2. Prezada Maria Carolina,

    Creio que as reuniões de formação propostas pelas escolas públicas seriam muito ricas se possibilitassem momentos de trocas de conhecimento entre as diferentes disciplinas envolvidas no dia a dia escolar. Seu texto abriu minha mente para novas propostas de atividades, buscando integrar o conhecimento histórico com o conhecimento linguístico.

    Um grande abraço e continue auxiliando nossa compreensão acerca do seu campo de conhecimento!

    1. Olá Bruno,
      Concordo com você. Seria muito proveitoso (e interessante!) aproveitar os horários coletivos para compartilhar metodologias e especificidades das diferentes áreas. Propiciar momentos assim nos ajudaria a saber com o que (e como) o estudante está entrando em contato em outras aulas, além de construir pontes entre as disciplinas de uma forma mais consistente. Infelizmente nosso tempo é tomado por muita burocracia, mesmo assim, fico feliz que o texto tenha suscitado reflexões e novas ideias!
      Um abraço,
      Maria Carolina

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