Carolina Cunha da Silva
Hoje portador de dois bacharéis pela USP, em jornalismo e em direito, funcionário concursado no Ministério Público e recentemente autor de uma grande reportagem sobre a crise no setor de hemodiálise para a BBC, em meados dos anos 1990 Ricardo Régener era uma criança público-alvo da escola pública, moradora do bairro Ermelino Matarazzo na Zona Leste de São Paulo. Seu pai era auxiliar de serviços hospitalares, “aquele cara que carregava fardo de carne no hospital” e, apesar de ser funcionário público, precisava de mais de um emprego para manter sua família; sua mãe trabalhava como diarista para complementar a renda da casa.
Ensino Fundamental: O início de uma jornada no ensino público
Quando chegou o momento de Régener ingressar na pré-escola, ele passou um tempo frequentando uma escolinha de baixo custo de uma senhora perto de sua casa e na primeira série foi para a única escola pública do bairro, a EMEF Henrique Pegado. Foi lá que começou sua jornada na educação pública, que perdurou até o ensino superior:
“Eu estive no Henrique Pegado por oito anos, da primeira à oitava série. Estava relembrando, e é tanta história! Tantos momentos que muitas vezes acabam determinando ou ajudando a determinar o que eu sou hoje. Coisas boas, coisas não tão boas.”
Ao ser perguntado sobre as “coisas boas” do tempo do Ensino Fundamental, Régener começou relembrando com carinho duas professoras que foram essenciais para sua formação:
“Uma foi a professora de português Elisa Vescio, de quem eu inclusive tenho muita saudade. Ela me emprestava os livros dos filhos dela e isso me ensinou a ler e a me interessar por Literatura. Foi ela que me indicou o cursinho pré-vestibulinho e falou pra eu entrar em uma Federal (Instituto Federal, o então CEFET). Certamente uma das maiores influências de profissional, que teve uma intervenção que mudou a minha vida.
E tinha uma outra professora também muito importante chamada Mariângela Castelli, de ciências, e que sabia do meu interesse e me trazia a Folha de São Paulo da sala dos professores para que eu lesse durante a aula; aquilo era maravilhoso, eu adorava pegar a Folha porque eu não tinha acesso a jornal”.
Além das professoras, Régener pontuou que geralmente as boas lembranças da escola não estavam ligadas à sala de aula, mas às atividades extracurriculares: “As excursões, uma vez que eu organizei um cinema na escola, teve um concurso de poesia que eu fui bem colocado, então isso me deu muito estímulo, ganhei uma medalhinha na 6a série, até comecei a escrever poesia depois disso, comecei a me expressar mais.”
Sobre os aspectos desse tempo que poderiam ter sido melhores, ele ressaltou a arquitetura de sua escola:
“A escola tinha uma arquitetura muito nefasta, de cadeia mesmo, e isso acaba determinando o comportamento, porque se você fica em um ambiente como esse muito tempo, você começa a agir como um encarcerado. Eu voltei lá numa eleição e falei ‘meu Deus, quanta grade!’”
Ele também lembrou de um episódio de indisciplina e desrespeito a uma professora e que hoje, do seu ponto de vista de adulto, consegue entender melhor o que realmente aconteceu:
“Eu lembro de uma professora na sexta série, ela era baixinha e tinha dificuldade de falar, falava muito baixo. Então os alunos começaram a caçoar dela, e um dia ela teve algo que hoje eu entendo que ela estava tendo uma crise de pânico dentro da sala. Naquela época eu não entendia o que era.
Então, o tipo de tratamento dado ao profissional que cuidava dos alunos era visivelmente muito ruim. Era aquela velha história do professor que entrava na sala, que só passava algo no quadro para copiar em 45 minutos e depois ia embora. Fui entender muito tempo depois que com o estímulo que ele recebe, talvez isto seja de se entender, pela falta de valorização.
Então, o professor mal estimulado acabava vitimando o aluno porque não tinha paciência e o aluno mal estimulado vitimava o professor com todo o tipo de xingamento, agressão moral.”
Da primeira turma do Educom.Rádio à ECA – USP
Voltando, porém, às boas lembranças, Régener fez parte da primeira turma do projeto Educom.Rádio, que existe até hoje nas escolas da prefeitura de São Paulo. Ele foi do grupo de alunos que fundou a rádio do Henrique Pegado, a Rádio HP:
“Eu adorava aquilo! A gente fazia programas de rádio, música, storyboard, que era contar histórias através de rádio. O Educom certamente teve o papel de me ensinar a me expressar. Eu estava na sétima série, cuidei um pouquinho da Rádio e depois fui embora. Quando eu voltei ao Henrique Pegado numa eleição em 2018, vi que a rádio está lá e funciona, vinte anos depois! Eu vi a anteninha que eu ajudei a instalar e é uma coisa da minha geração que ficou pra escola.”
Ele também afirmou que não tem dúvidas de que o projeto o influenciou na escolha da faculdade de jornalismo. Na época, o projeto era feito por estudantes de Rádio e TV da Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA – USP), sendo seu primeiro contato com alunos de lá. Seu interesse por comunicação foi tanto que sua avó lhe deu um gravador de presente, ele criou um blog e quando chegou a época do vestibular, ele queria estudar na ECA:
“O Educom foi em 2001 e eu entrei na ECA em 2007; foram seis anos e eu vejo uma linha histórica que começa no Educom e que culmina na minha entrada em jornalismo. Um projeto bem feito pode ajudar a definir o rumo de uma história de uma maneira muito legal e muito profunda. Eu sou muito grato aos profissionais e àquela galera que dá o sangue pra fazer acontecer e vejo o reflexo disso na minha vida.”
Régener também refletiu sobre a importância dos saberes aprendidos na rádio não só na área acadêmica, mas para a vida, já que a capacidade de comunicação lhe deu autonomia para escrever convites, fazer folderes de eventos e servir sua comunidade e as pessoas à sua volta. Mesmo para os que, diferente do seu caso, não seguem carreira na área, ele ressalta:
“Com a facilidade de se comunicar em uma entrevista de emprego, a pessoa pode definir o seu mundo ali se já tiver usado um microfone na vida. Eu acho que é um tipo de empoderamento, você empoderar uma pessoa com um microfone e fazê-la ter o poder de narrar a própria história e fazer o próprio caminho”.
O Ensino Médio no CEFET: “Ali só estuda crânio!”
Entre sua participação no Educom e seu ingresso na ECA – USP, porém, houve um capítulo muito importante na vida de Régener, que foi o seu Ensino Médio cursado no antigo CEFET, atual Instituto Federal (IF). Ele conheceu o CEFET quando passava pela estação Armênia do Metrô e seu pai falava: “Ali só estuda crânio!”. Isto instigou Régener a querer fazer seu Ensino Médio lá. Para isso, ele contou com o apoio de algumas pessoas.
A primeira foi uma tia, que custeou o cursinho pré-vestibulinho popular do bairro. E a segunda foi a já mencionada professora de português Elisa Vescio, que indicou o cursinho, no qual seu filho também estudou, passou as dicas, deu carona e segundo ele, “deu o caminho das pedras para que eu conseguisse entrar na federal e depois entrasse na universidade pública. Pra mim foi como uma redenção, porque eu sempre quis estudar lá, era um colégio público tido como muito bom e realmente era.”
O uso da palavra “redenção” por Régener pode ser entendido quando ele descreveu a diferença entre o acolhimento que recebia na EMEF e no IF:
“Foi do inferno ao céu, porque no Ensino Fundamental eu era aquele menino nerd que sofria bullying porque era diferente, tinha a cabeça grande, o pé grande, usava aparelho; eu tinha esses estigmas que deixaram uma marca na época, e na federal eu encontrei gente que falava a minha língua e estava interessado na mesma coisa, tanto que meus primeiros amigos que eu mantenho até hoje foram lá na federal.”
Ao ser perguntado sobre o que faz a excelência do IF do seu ponto de vista de egresso, ele destacou três aspectos: o ambiente, a estrutura e as abordagens didáticas.
Quanto ao primeiro, Régener ressaltou que o fato de o campus ser grande, com árvores e aberto, em contraste com sua EMEF, que era cheia de grades, permitia que os estudantes tivessem espaço para refletir, ler, se encontrar com os colegas e ter ideias:
“Era um ambiente mais aberto, aberto à dúvida, não tinha grade, se a gente não quisesse ver a aula, a gente ia pro Shopping D e isso era ótimo. Era uma aposta didática que demonstrava que aquilo não era uma cadeia.”
Ele destacou que o ambiente do IF foi fundamental para que ele se sentisse estimulado a prestar vestibular, já que esse era um assunto recorrente entre os colegas. Todos tinham planos para a FUVEST, e era um fato conhecido que os alunos do IF eram frequentemente aprovados na USP: “O legado do IF, por ser um Ensino Médio de qualidade, é de um projeto pedagógico de empoderamento, de você estimular o aluno a ser um engenheiro, um jornalistas, um jurista.”
Quanto à estrutura e as abordagens didáticas, suas lembranças são de aulas práticas, em laboratórios, com equipamentos como testador de gravidade elétrico e tubos de ensaio, experimentos e explosões, observação de células e cálculo de velocidade média em tempo real.
Régener também recordou a importância das disciplinas extracurrriculares, que tinham o nome “projeto” no IF. Ele participou dos projetos “Xadrez”, “Clube da Ciência” e “Literatura Universal nos Últimos 300 anos”:
“Eu era o pior de xadrez da minha sala, mas aprendi a jogar. Depois no segundo ano foi o Clube da Ciência, que era um grande laboratório com experimentos de todo o tipo; organizamos uma Olimpíada de Ciências na escola. E no terceiro ano foi “A literatura Universal nos Últimos 300 anos”. Eram oito ou nove obras de literatura Universal para ler durante o ano, e foi um repertório que eu não li na faculdade e sim no Ensino Médio: Metamorfose de Kafka, Dostoyevski, Crime e Castigo, livros básicos do Marx, Madame Bovary, eu li tudo lá!”
Educação para a vida
Durante a conversa, Régener mencionou mais de uma vez a diferença que a educação proporcionou na história de sua vida e de sua família. Traçando sua árvore genealógica, ele percebe que cada geração conseguiu chegar um pouco mais longe, e a educação teve um papel fundamental nisto:
“Meu bisavó era analfabeto; a minha avó tem a quarta série, ela conseguia ler. Ela levava o pai no trabalho, pois ele não sabia pegar o ônibus, e conseguiu um emprego para ele. Hoje a minha avó tem uma vida muito melhor do que ele, porque simplesmente aprendeu a ler. O básico do básico já fez uma diferença gigantesca. Meu pai conseguiu passar no concurso do Hospital do Servidor Público Municipal, de nível fundamental. Ele ganhava super pouco, mas era uma rendinha fixa, então não tinha desemprego para ele e foi algo que ajudou a nossa família.”
Outra curiosidade descrita por Régener foram as habilidades não acadêmicas que ele acredita ter desenvolvido em sua jornada na escola pública. As duas principais foram a autonomia e a capacidade de se defender, que ele só percebeu que eram habilidades depois de adulto:
“Por não ser aquela pessoa que tem um mentor, um secto ao seu dispor, eu aprendi a ir atrás. Comecei a viajar sozinho cedo! Depois que consegui um emprego melhor, viajei sozinho para países que eu não falava a língua, me virando! Na faculdade de direito, que tinha muita gente de elite, eu comecei a perceber que havia pessoas que nunca tinham pegado metrô e que iam para a faculdade com motorista. Elas não sabiam ir ao bazar da esquina comprar uma caneta. Pessoas com condições economicamente melhores que a minha visivelmente não desenvolveram certas autonomias.
No ensino fundamental foi um aprendizado mais traumático, eu aprendi a me defender. Lembro de episódios da 5ª série de tentativas de agressão, aquelas brigas de recreio, e hoje eu tenho maneiras de sair de situações de perigo, de me preservar. Eu aprendi também a me impor, com muita educação. São coisas que você usa hoje no ambiente de trabalho, nessa grande selva que é o mundo; o mundo é um lugar muito perverso. Então, situações que poderiam ser traumáticas acabam sempre ensinando alguma coisa.”
Os direitos sociais e o acesso aos bens de educação
Saindo do âmbito individual e pensando na importância das políticas públicas voltadas à educação, sobretudo dos mais pobres, Régener refletiu sobre todas as esferas que compõem a educação de uma pessoa, como a família, a escola, o meio social, a igreja, o país; e como muitas vezes a atuação da esfera pública pode ser determinante para o futuro de uma criança periférica:
“Nasci em dezembro de 1988. Então, eu sou a primeiríssima geração brasileira da Constituição, que não viu a ditadura. Depois daquele momento político, de atribuição de muitos direitos, tiveram as questões econômicas, de acabar com a inflação.
Quando eu fui pro Ensino Médio em 2003, foi um momento também de muitas oportunidades e de muitas novas políticas públicas de inclusão. Entrei na faculdade em 2007, foi o ano da criação do ProUni; cheguei a entrar na PUC pelo ProUni. Então, eu sou fruto de um momento histórico favorável que permitiu que nós tivéssemos acesso a bens de educação que talvez um menino que nasceu em Ermelino Matarazzo nos anos 1960 provavelmente não teve.
Tenho muito receio quanto aos meninos que hoje tem 6 ou 7 anos no bairro em que eu nasci. Será que eles vão ter acesso a um ProUni, ou a uma vaga na universidade? Eu temo que não, pois a gente vive um momento muito grave de arrocho de direitos sociais, então eu fico muito triste em saber que tem uma geração com talvez mais talentos e potenciais do que eu e que provavelmente não vai ter a oportunidade de construir algo. Saber que o momento histórico muitas vezes ajuda a definir quem nós seremos.”