A professora que vive em mim

Cássia Cristina dos Santos Lopes

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Foto: Pixabay

O clichê chegou antes: “Não fui eu quem escolhi a docência. Ela quem me escolheu.”

Quem aí não conhece um professor que não faz essa declaração? Somos inúmeros. Existe a romantização da profissão e não é disso que estou falando. Trato sobre a minha descoberta pelo ato de ensinar, de compartilhar, repartir e assim multiplicar experiências por vezes, tão rápido quanto a proliferação de uma cultura de bactérias.

Sou Cássia Cristina Dos Santos Lopes, tenho 36 anos. Nasci e cresci em Carapicuíba, cidade da Grande São Paulo e sou professora na escola pública. Muito antes de começar a frequentar a escola tive a minha primeira professora. E acredito que este foi o grande marco em minha vida, a primeira mestra que com carinho me ensinou a tracejar as primeiras garatujas, corrigiu minhas pequenas atividades, elogiou os meus não tão lindos desenhos. Minha grande mestra tinha apenas oito anos de idade,  apenas dois anos a mais que eu de experiências escolares, no entanto, suficientes para que eu me tornasse sua primeira aluna, e ela, a minha “prima-primeira-professora”.

Sua letra insegura e seu método sem embasamento teórico, porém com o desejo de ensinar correndo em suas veias. Mesmo tão inexperiente me alfabetizou com as sobras do material da minha pré-escola que abandonei, uma vez que não me satisfazia, devido suas atividades estarem aquém do meu desenvolvimento com minha NOVA PROFESSORA JOSILENE.

Sua pequena lousa trazia uma imensidão de sonhos. Nossa mesinha bamba arranjada pelo vovô, circundada por um jardim embaixo do pé de goiaba ou de laranja, era nossa sala de aula. Na verdade, qualquer cenário de nossa casa se transformava onde a lousa ela pendurava. Assim nasciam as minhas primeiras palavras e bilhetes que minha mãe recebia quando eu fazia algo de errado e deviam voltar no outro dia assinados.

Sei que fui a primeira de muitos alunos que já se passaram e ainda passarão em sua vida. Inspiro-me nela, desde então. Tenho certeza que esta experiência adocicada na medida certa me possibilitou ser professora assim como ela é. Não deixo de ser grata a esta experiência tão inocente e significativa.

Cresci carregando esta memória e logo no final do ensino fundamental II soube da existência de um processo seletivo para o ensino médio próprio para a formação de professores de educação básica, o extinto CEFAM (Centro de Formação e Aperfeiçoamento ao Magistério), que ficava na E.E. Willian Rodrigues Rebuá. Vi ali um caminho para dar meu pontapé inicial nos estudos para ser professora. E assim foi. Passei no processo seletivo, me matriculei e cursei 3 dos 4 anos em Carapicuíba mesmo e o último deles no CEFAM Jales, cidade para onde a minha família se mudou na ocasião. Lá eu me formei.

Na época, já sabíamos da futura obrigatoriedade do ensino superior para a classe de professores do ensino fundamental I, que em alguns anos seria aplicada com força de lei, no entanto, isso não foi entrave para a aplicação e empenho dos meus professores, em sua grande maioria dedicados e inesquecíveis. Sim, eu tenho fascínio por alguns deles até hoje. A formação direcionada aos estudantes do ensino médio nesta modalidade demonstrava-se muito contemporânea, engajada, preocupada com a formação de cidadãos atuantes, críticos e capazes de resolver problemas. Sinto que estudar neste ambiente fez muita diferença em minha prática pedagógica e a carrego para a vida profissional.

Ao mesmo tempo em que cursava o último ano do magistério, que era em período integral, fazia o primeiro ano no ensino superior de Licenciatura em Ciências Biológicas.

A opção pela Biologia não foi difícil. Tenho intensa ligação com a natureza. Gosto de pisar na terra, do colorido das flores, me interesso pelo ciclo de vida e desenvolvimento dos seres, sempre demonstrei interesse com as questões da ecologia e preservação do ambiente. Assim, foi uma decisão muito orgânica. Isso também não significa que não tinha outros desejos, mas vindo de uma família em que os primeiros a terem acesso a educação superior estão em minha geração, parece ser recorrente que estes cursem a licenciatura. Entro nestas estatísticas, mas faço parte daqueles que gostariam de ser professores, apesar de também ter outros desejos, comuns até hoje em meus pensamentos, haja vista na cabeça de uma jovem.

Assim que terminei o magistério, mesmo morando em uma cidade relativamente pequena, consegui colocação no mercado de trabalho. Fui contratada como educadora por uma instituição de apoio à criança e ao adolescente, voltado ao atendimento de meninos de bairros em situação de vulnerabilidade econômica da cidade. Os meninos eram atendidos na instituição no período pós-aula. Lá fazíamos as atividades encaminhadas pelas professoras, exercitávamos as principais dificuldades escolares e foi onde percebi o quão difícil seria não se envolver afetivamente com as crianças.

Cheguei em um contexto onde os sentia muito agressivos, não faziam amizade comigo, brigavam. Uma vez, fomos trancados na sala pela menor criança da turma que escondeu a chave e ali se estabeleceu a indisciplina geral. Situação tensa para uma recém-formada de 19 anos, sem experiência, mas com muita vontade de aprender.

Alguns meses depois eu já conhecia as histórias que algumas famílias traçavam e tudo fazia mais sentido com relação ao comportamento que os meninos apresentavam. 

Por se tratar de uma instituição com foco principal na defesa dos direitos socioassistenciais, que visava abrandar as vulnerabilidades ultrapassadas por estas famílias, quando iniciei lá, não havia livros para uso dos educadores e deleite dos meninos. E não havia proposta de compra também, uma vez que a verba era sempre muito bem designada às prioridades, inclusive alimentícias. Neste cenário, tive a oportunidade de desenvolver o meu primeiro trabalho de grande alcance. Assim, embarcamos no Projeto: Patrocine uma viagem: doe um livro! Tivemos divulgação na cidade e publicação no jornal. O projeto foi acolhido pelos munícipes e recebemos muitas doações. Montamos um acervo lúdico e disponibilizamos materiais para os meninos consultarem para seus trabalhos escolares. Uma vitória para minha estreia.

Além da prática simplesmente pedagógica, dividimos muitos bolos de chocolate e cenoura feitos por minha mãe. Não os esqueço. Gostaria muito de reencontrá-los, saber da trajetória de vida, das conquistas. Eu confio muito no potencial de cada um.

Saí desta realidade e passei a dar aula em uma escolinha particular onde atuava como auxiliar de classe de berçário no período da manhã e era professora titular de pré II no período da tarde. Um choque de realidade. Seis aluninhos. Lancheirinhas fartas. Exclusividade no atendimento. O mesmo carinho e amor da minha parte. Foram as primeiras crianças que acompanhei na alfabetização, precoce, por sinal. Minha concepção atual não prega a alfabetização precoce das crianças. Creio que atividades lúdicas bem direcionadas, empenhadas no brincar e compreender o mundo que o cerca, são muito mais importantes que a prática extenuante tradicional da alfabetização. Há de se ter parcimônia. A experiência me trouxe muito isso.

Nesta escolinha senti como influenciamos na vida das crianças, quando observei que uma delas coloria todos os seus desenhos de pessoas com cabelos vermelhos, assim como os meus, naquela época. Um exemplo simples para nos levar à reflexão sobre a responsabilidade de ser professor. Não passamos desapercebidos dessas vidas. O que me leva a pensar, o que estamos fazendo com esta influência?

Ao encerrar a faculdade, voltei a morar na Grande São Paulo, onde iniciei minha vida profissional na educação pública, no entanto, desta vez, como professora de Ciências no ensino fundamental II, onde assumi meu primeiro cargo público de um concurso que prestei assim que me formei.

Minhas práticas como professora de Ciências buscam, na medida do possível, engajar o aluno, visando entre eles, as áreas de interesse, conforme o ano escolar, uma vez que essa parece muito transitória, à medida que situações e possibilidades novas vão sendo apresentadas.

Nos primeiros cinco anos de atividade como professora de Ciências, desenvolvi muitos projetos, mas dentre eles, o que me deixou mais saudade foi o “Sexualidade na Cabeça”. Este projeto foi sendo construído e aprimorado ao longo dos anos na unidade escolar que trabalhava. Sendo que, no último ano que lá estive alcançou o seu ponto mais alto com relação ao engajamento da comunidade escolar. 

No início do ano letivo seguinte fui convidada a participar da equipe responsável pelos encaminhamentos pedagógicos desta mesma secretaria de educação, tais como: produção de direcionamentos pedagógicos acerca de avaliação, revisão e produção de “caderno de apoio” de Ciências do 4º ao 9º ano, produção de conteúdos complementares, elaboração de avaliação institucional de ciências com base na teoria de resposta ao item, além da formulação de questões com revisão e análise com base na neurociência, colaboração na construção do conteúdo curricular de Ciências de acordo com a BNCC, organização e acompanhamento de descritivo para compra de materiais para montagem de laboratório escolar, elaboração de manual de uso de laboratório, acompanhamento da formação de professores de ciências com relação às práticas laboratoriais, criação e aplicação de aulas preparatórias para SAEB, elaboração de disparadores de atividades/projetos com temas relacionados a tabagismo (narguilé), saúde do ouvido, atividades utilizando recursos Google em contexto de sala de aula, entre outros.

Entre 2019 e 2020, tive oportunidade de trabalhar especificamente no Departamento de Projetos dessa rede, onde tive a oportunidade de desenvolver, juntamente a equipe diversas práticas que serviram também para afirmar o meu engajamento no desenvolvimento de projetos, sendo eles:

  • Passeio Cultural – onde as crianças da educação infantil foram  levadas aos pontos principais da cidade para desenvolverem senso de pertencimento ao espaço que vivem;
  • Projeto de retomada da educação presencial em tempo de pandemia – com objetivo de aplicação de atividades extracurriculares no espaço da Secretaria de Educação com alunos em situação de vulnerabilidade ocasionada pela pandemia, aplicada com mais de cem alunos em condições seguras, onde não houve infecção entre os participantes (professores e alunos);
  • Projeto 12 de Maio – com objetivo de sensibilizar a comunidade escolar com relação aos abusos sexuais enfrentados pelas crianças;
  • Projeto de coleta de tampinhas plásticas – com objetivo de plantar a sementinha da necessidade da destinação correta do material reciclável;
  • Projeto: “O vizinho também sou eu” – com objetivo de demonstrar a co-responsabilidade na questões das doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti;

Para fechar minha participação como professora em atividade correlata nesta Secretaria de Educação, trabalhei junto a uma equipe de profissionais na elaboração do Protocolo Sanitário de Segurança, em colaboração com diversas secretarias municipais, com ênfase a Vigilância em Saúde que norteou todo o trabalho. Além da produção, atuei efetivamente na elaboração dos manuais voltados aos alunos e familiares, na formação dos profissionais da educação para a implementação do protocolo, nos acompanhamentos das ocorrências na ocasião das atividades presenciais com alunos da educação infantil, ainda em novembro de 2020.

Paralelamente a estas atividades, assim como a maioria esmagadora de professores de escolas públicas, forçados a se submeter a cargas extenuantes de trabalho devido a desvalorização salarial da profissão, assumi o segundo cargo como professora, este na rede estadual de São Paulo.

Quando prestei este concurso, vislumbrava dar aulas na escola em que estudei boa parte de minha vida. Nesta escola, também tive a oportunidade de atuar como professora eventual nesta e a experiência foi incrível. Desejei que esta realidade fizesse parte do meu cotidiano. Ao chegar na Escola Estadual Professora Regina Halepian Antunes, fui recebida carinhosamente pela então diretora Cecília. Ela havia sido minha professora no ensino fundamental I e desde então carrego minha admiração. Foi muito especial retornar a este ambiente como professora.

A escola, nesta ocasião, era muito organizada, limpa, um espaço acolhedor para alunos e professores. Eu sentia os alunos da Educação de Jovens e Adultos sedentos pelo aprendizado. Valia a pena o suportar o cansaço do trabalho cansativo que realizavam durante o dia para chegar na aula no período noturno. Ali eu encontrei as minhas diferentes necessidades de aprendizagem, desde alfabetização até alunos prontos para o vestibular. Assim como na vida, somos ímpares. Lidar com essas diferenças com empatia sempre foi muito proveitoso, uma vez que o desejo de aprender era uníssono. São tantas vidas que passaram por mim e me deixaram muito deles. Tantas histórias. Tantos sonhos e perspectivas. Ensinar o uso do caderno para uma senhora de 50 anos parece algo tão superficial, mas entender a importância de desempenhar este papel é impossível de mensurar o valor. Abrir espaço para ouvir histórias e aprender mais que ensinar em vários momentos, e em outros explicar como o corpo funciona, dizer que Universo é mais que sua própria casa (a casa feita de tijolos mesmo), falar sobre formação do planeta Terra em solo irrigado, muitas vezes, exclusivamente de dogmas religiosos, compartilhar saberes sobre formas de prevenção a infecções sexualmente transmissíveis, trazer informações sobre uso de métodos contraceptivos INCRIVELMENTE desconhecidos em suas bases mais simplórias de funcionamento e ação. Foram muitos anos e inúmeras práticas que carrego em meu coração.

Contudo, o excesso de horas aulas em dois vínculos de trabalho algumas vezes me tornou uma profissional mais “fria” e afastada da magia do ensinar, o que percebo inclusive, ao redigir este texto. Afastei-me do cargo do estado, onde a remuneração é menor, considerando os vínculos que possuo, e logo em seguida entramos em quarentena.

Neste ano, retomei as minhas atividades em sala de aula do cargo municipal e, ainda estamos em atividades remotas. Assim, me coloco diante dessa realidade em um ambiente um pouco menos desafiador do que aqueles que iniciaram em março de 2020, uma vez que encontrei alunos aptos ao trabalho remoto, desenvolvendo bem as atividades com diferentes ferramentas Google e uma nova forma de pensar em projetos, onde o mais importante é a manutenção da saúde coletiva.

E é para isto que também como profissional da ciência me coloco à disposição dos meus alunos, para que juntos (porém longe),  consigamos nos manter aprendendo e crescendo a cada dia. Existem momentos que parece ser impossível dissociar o pessoal do profissional, principalmente quando as salas de aulas vieram para dentro de nossas casas.

Não é possível ignorar, entretanto, as dificuldades daqueles que possuem barreiras na conectividade, fator que escancarou questões de disparidade socioeconômica e de desigualdade digital enfrentadas por tantas famílias. A preparação de atividades impressas me parece ser insuficiente para dar o mínimo para quem mais precisa. A sensação da impotência vem. E fica!

Direcionar algumas horas na elaboração deste texto me possibilitou revisitar muitas sensações da  minha caixinha de memórias. Tive a oportunidade de perceber como ao longo destes dezenove anos de docência me rendi aos benefícios da prática por meio de projetos. Trabalhar com esta metodologia me possibilitou vivências em que meus alunos demonstraram aprender de forma significativa, estimulante e instigadora, o que contribuiu na formação de pessoas capazes de articular diferentes conhecimentos os tornando protagonistas da sua realidade, mais do que apenas reprodutores de termos e conceitos memorizados. Assim, a minha jornada na educação reproduz a teoria, aqui expressa do meu jeitinho: construir projetos possibilita escrever páginas inesquecíveis na vida dos alunos, sobretudo nesta geração que cresce sabendo onde encontrar as respostas de suas perguntas, mas que ainda não deixou de necessitar do ponto de equilíbrio entre a dúvida e o conceito –  o professor – aquele que carrega consigo a humanização que nenhuma tecnologia ainda é capaz de recriar.

Diante de toda esta reflexão que me coloquei nesse momento,  não me desconecto do ser que sou, além das práticas pedagógicas que essas palavras carregam. Sei que a professora vive em mim, mas me reconheço além da minha profissão. Sou o ser que carrega sonhos e expectativas de um futuro melhor, ainda mais, de um “presente” melhor que pode ser construído e vivido por mim, por você que me lê e por quem está sentadinho lá do outro lado da tela na educação remota em toda a sua integralidade. As pessoas que chamamos de alunos.

Encerro agradecendo o convite. Sinto-me lisonjeada por participar deste lindo projeto e desejo muito crescimento para esta revista que acaba de nascer. Como disse, sou apaixonada por ciclos, e aqui presencio mais um. Parabéns!

Cássia Cristina dos Santos Lopes
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Professora de Ciências de Educação Básica II. Atua há 19 anos como professora, sendo 17 anos na Rede Pública de Educação Básica.

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6 Comentários

  1. Muito obrigada pelo carinho, acredite me sinto honrada em ver a minha primeira aluna onde chegou e sinto me feliz por ter dado início em sua caminhada. Parabéns professora Cássia.

  2. Como é lindo ver um docente falar com tanta ternura da sua docência.
    Parabéns professora!!!
    Parabéns a todas as professoras e professores que como Cassia, fazem a diferença dentro das escolas públicas, valorizando o seus alunos e estimulando-os a uma mudança de paradigmas em uma sociedade desumana!!!

  3. Prezada Cássia,

    Seu relato é uma inspiração, mesmo que os caminhos sejam diferentes. Penso que a educação me escolheu e insiste em me “puxar” para suas fileiras, mesmo com uma grande “resistência” da minha parte… Mas vejo o quanto estamos fazendo por cada estudante, o quanto podemos ajudar no caminho a ser trilhado, e isso faz uma diferença enorme, não é?
    Gostaria de saber se você tem publicado estes projetos que você desenvolveu, ou parte deles. Gosto também de pensar e tentar executar projetos, e é sempre bom ter outros como base, mesmo sendo de outra área – História.

    Grande abraço, e parabéns pela sua trajetória!

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