A espiral de inovação conservadora

Diogo Canhadas

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Espero que entendam que escolhi não me render aqui ao surto “novidadista” ou à tecnofilia que alguns demagogos propagam em seus cargos do poder executivo devido à pandemia de 2020-2021, mas se hoje vivemos a maior urgência da inclusão digital já vista (urgente para quem esteve fora da escola nos últimos 40 anos) e se este é um tema  que está sempre presente nas soluções eleitorais vendidas a cada dois anos nas campanhas, na prática quem se arrisca a compor práticas inovadoras e criativas muitas vezes ou é ignorado ou duplamente punido. A lógica da disciplina instrucional e conservadora se impõe por mecanismos antigos. Os pequenos e mesquinhos poderes se sobressaem, embora atualizem seus vocábulos e discursos.   

Recuso que a tecnologia seja capaz de suprir o que é humano, mas sou entusiasta das novas conectividades, já fui tutor e já fui aluno de vários cursos de ensino a distância, gosto muito de compartilhar artigos científicos, livros em fotocópia e aprecio os novos caminhos do iluminismo até o enciclopedismo virtual colaborativo que as redes sociais criaram. Tudo isso traz riquezas novas à humanidade. Nunca tivemos um acervo como este, mesmo que ainda precise ser democratizado.

Há vários anos procuro incorporar novas ferramentas ao trabalho que faço como docente: formulários virtuais, consulta a dicionário do próprio celular (que eventualmente incorpora os vícios de digitação de cada um e vale uma discussão), avaliações interativas e até mesmo uso crítico da injustamente atacada Wikipedia – conheço quem reclame desta por não entender seus mecanismos democráticos e que usava “naquela época” uma enciclopédia encapada em couro, com dados errados, desatualizados e até “neutros” ou elogiosos sobre imperadores genocidas, então ignoro a fanfarra desafinada em nome da saúde mental. Como professor de filosofia, sou fiador de qualquer ferramenta que permita novos caminhos para aprendermos a nos emancipar. 

Há muito que a vontade educadora sonha com a extrapolação dos muros da escola e com a expansão da aprendizagem. Se há barreiras físicas, sociais ou econômicas que podem ser derrubadas pelos meios remotos ou virtuais não há motivos para nos opormos. Claro que nenhuma ferramenta ou técnica usada sozinha ou de maneira inadvertida trará bons resultados.

Deixemos de lado os pormenores e vamos a exemplos reais do que constatei até 2019 em diversas escolas da rede estadual paulista:

  • foi instalada a internet de banda larga com roteador sem fio (wi-fi) em algumas escolas em 2016 e 2017. Nem mesmo os professores receberam a senha de acesso;
  • computadores para uso de alunos e professores com bloqueios de uso que impediam até mesmo o acesso a blogs ou provedores de softwares para uso pedagógico;
  • ao usar formulários virtuais, questionaram como seriam geradas “evidências” de que estudantes haviam feito as atividades se não havia “papel”;
  • a “entrega de notas” era feita até 2014 por meio de uma papeleta destacada do diário de papel. Sugeriu-se o uso de tabelas de Excel para agilizar o Conselho de final de bimestre. Passamos a entregar o diário, a papeleta E a tabela de Excel preenchida;
  • com a chegada do diário digital funcionando sem erros em 2019, alguns dos que se aventuraram a usar a nova ferramenta foram obrigados a entregar a versão digital e a de papel;
  • com a propagação de novas formas de criação de jogos educativos de acordo com um projeto pedagógico de cada docente e mesmo conforme formações e incentivos à “gamificação” nos sites oficiais do governo estadual, qualquer docente que se arriscasse a criar ou aplicar novas dinâmicas de ensino-aprendizagem era submetido a espremer sua agenda para colocar também as avaliações clássicas;
  • o uso de projetores e outras tecnologias era desestimulado. Quem os usava muitas vezes na semana, mesmo que não tivesse concorrentes interessados em usá-los, ouviria coisas como “está com preguiça de escrever na lousa?”;
  • ao ser colocado em prática o programa “SP sem papel” em 2019, enquanto todos os processos eram digitalizados não era raro se ouvir gestores dizendo “não confio no sistema” e vários funcionários de secretarias escolares foram obrigados a manter um caderno manuscrito com data, hora e procedimento realizado no sistema.

Os conflitos acima não são fruto da omissão das “autoridades” ou da ausência de políticas públicas, não me refiro a escolas fragilizadas pela ausência total de investimentos tecnológicos. São problemas resultantes de práticas e omissões de indivíduos com cargo público, efetivados e com autonomia conferida pela lei. As ferramentas e soluções tecnológicas chegaram de uma maneira ou de outra ao consumidor final, porém prejudicadas por Conselhos Escolares inertes, gestores escolares ignorantes quanto à prerrogativa de seus cargos e que trabalharam ativamente para não se submeterem a novos aprendizados e debates.

O ensino remoto ou o ensino a distância nessa pandemia se tornou causa de muitos transtornos psicológicos e emocionais para docentes e estudantes não só por conta das desigualdades socioeconômicas, mas porque muitos tiveram que aprender às pressas a usar três, quatro, cinco ou mais meios de interação digital. Há vários anos a chance de aprender a utilizar as novas ferramentas vinha sendo reprimida por gestões locais conservadoras demais para entenderem que seja lousa ou seja site, a intenção e a metodologia de ensino importam mais que a plataforma da qual dispomos. Discutimos tanto acerca das grandes políticas que esquecemos de questionar as práticas de nossas comunidades escolares.

Diogo Canhadas
Diogo Canhadas
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Professor na rede estadual de ensino São Paulo. Licenciado em Filosofia, Pós-graduado em Geografia e Mestre em Educação.

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4 Comentários

  1. Prezado Diogo,

    Seu texto é uma importante reflexão nestes momentos de pandemias – de covid, de desorganização social, de desarticulação da verdadeira política etc. – que vivemos em nosso país. E a escola deveria ser vista como prioridade, e não como “serviço essencial”, como estamos vendo agora.
    Se assim fosse, ela conseguiria acompanhar, mesmo que a distância devido a seu papel reflexivo importantíssimo em nossa sociedade, os avanços e as possibilidades que a tecnologia de fins do século XX e início do XXI nos proporciona, em como podemos utilizar os avanços da humanidade como uma ferramenta facilitadora de nossas práticas educacionais.
    Entretanto, como você brilhantemente apresenta em seu texto, a inabilidade dos diferentes atores da educação em adaptar e utilizar a tecnologia como uma ferramenta é assustador! Não estamos falando de pessoas que não tenham tido, minimamente – acredito eu – uma educação que permita pensar um pouco a mais para fora da caixinha. Fora que já estamos lidando com avanços tecnológicos a um tempo razoável em nossas gerações de professores. É inaceitável não criarmos meios de uma educação mais ampla. Vejo ou incompetência ou projeto, e ambos são inaceitáveis!
    Penso que colocar a tecnologia no centro, como elemento educador por si só é um equívoco que este momento nos deixa tão claro quanto aquela antiga “brincadeira” da torta na cara ao errar uma resposta – o passa ou repassa, que denuncia a idade deste que vos fala. É preciso vislumbrar as tecnologias como instrumentos, como meio facilitador de nossas práticas e do aprendizado dos estudantes. Pois, sem uma formação desta geração nas possibilidades que a tecnologia nos dá na leitura e compreensão de mundo, estaremos apenas “produzindo” “likers” e “haters” sem nenhum compromisso com a coisa pública.
    Existem tantos aspectos que o seu texto suscita que poderíamos, inclusive, bater um papo e produzir mais reflexões sobre esse tema. O que você acha?

    Grande abraço e parabéns pelo seu texto!

    1. ¿Qué tal Diego?, desde Argentina compartiendo tus preocupaciones. En estas latitudes se trabaja en resolver 2 cuestiones inmediatas, la primera es que todos puedan tener acceso a las nuevas tecnologías, la segunda cuestión es trabajar con los saberes tecnológicos. Es una deuda muy grande la que tenemos aquí. La pandemia dejo en evidencia este modelo enciclopedista y puso a los profesores a repensar sus practicas y paradigmas (algunos muy vencidos). Es hora de darle un cambio de dirección, tenemos que dejar de pensar en enseñar solamente contenidos para enfocarnos mucho mas en enseñar maneras de ser y de estar en el mundo.
      He llegado aquí casi de casualidad, es un gusto compartir este espacio y preocupaciones, cuando quieran podemos intercambiar bibliografía y marcos teóricos al respecto para poder llevar propuestas superadoras que creen experiencias innovadoras de enseñanza y aprendizaje.
      Saludos, Francisco.

      1. Francisco, ¡lo has hecho bien! Sin embargo, no sé cómo son las políticas públicas de educación donde trabajas, aquí precisamente las oportunidades de pensar “cómo ser y ponerme frente al mundo” han sido tragadas por disciplinas basadas en “urgencias” del mercado con la intención de capacitar ciudadanos enfocados en carreras y proyectos pragmáticos de lucro inmediatista. Como profesor de filosofía, yo he usado mis trucos aquí para mantener temas críticos incluso en temas transversales, los equipos de gestión tienden a luchar contra o vetar las discusiones que consideran problemáticas.

    2. Obrigado pela leitura atenta, meu caro, faltei com a resposta justamente por inaptidão em gerir tantas interações virtuais ultimamente.

      Eu sempre sou a favor de construirmos debates quando as tensões são tão evidentes para os envolvidos, acho que uma das coisas que tem colidido contra nós na educação são as excessivas formações também. Qualquer questionamento mais crítico recebe uma bula com recomendações de cursos e palestras.
      A inabilidade ou mesmo a “incompetência” estão nos colocando à deriva, mas nossa geração de professores não precisaria passar por tanta coisa se fosse respeitado o tempo de reflexão e aprendizado (coisa que a excessiva carga horária já comeu). Ainda se pensa que faz sentido fazer chamada para verificar presença num mundo hiperconectado, por exemplo (se podemos aferir a presença via “login” e o aproveitamento da atividade via resultados entregues, para que gerar lista de presença?).

      Também me soa como uma comédia pastelão, seja como gincana ou como folhetim cotidiano.

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